Missões de Amor

Por Eguinaldo Hélio de Souza

“Engrandecei ao Senhor comigo e juntos exaltemos o seu nome.” Salmo 34.3

 Esta reflexão foi provocada pela pergunta de um jovem obreiro: “Pastor, é verdade que a chamada de Deus é metade para o marido e metade para a mulher?”. Naquele momento a resposta pareceu difícil. Então, quando conhecemos um pouco da história de missões e contemplamos a obra missionária no passado e agora, aprendemos algumas coisas. Não apenas na ação missionária, mas no ministério cristão de modo geral, é preciso se pensar em uma “missiologia matrimonial”.

A turbulenta esposa de William Carey

Em termos de matrimônio, a era moderna das missões protestantes não começou de modo perfeito. William Carrey, um ajudante de sapateiro inglês (Deus sempre escolhe as coisas fracas) alimentou desde cedo a idéia de ir à Índia pregar o evangelho. Trabalhava com um mapa da daquele país diante de seus olhos e se preparou boa parte da sua vida para o momento em que deixaria a Inglaterra rumo ao campo missionário que escolhera. Sua atitude, aparentemente simples, abriu caminho para que a Igreja Protestante começasse a se mover em direção a missão.

E sua esposa? Rumou para a longínqua Índia voluntariamente e disposta? A história nos conta que não foi bem assim.

Entretanto, o que mais sentiu foi quando a sua esposa recusou terminantemente deixar a Inglaterra com os filhos. Carey estava tão certo de que Deus o chamava para trabalhar na Índia que nem por isso vacilou. A sociedade missionária, apesar de tantos contratempos, continuou a confiar em Deus; conseguiram granjear dinheiro e compraram passagem para a Índia em um navio dinamarquês. Uma vez mais Carey rogou à sua querida esposa que o acompanhasse. Ela ainda persistia na recusa e nosso herói, ao despedir-se dela, disse: “Se eu possuísse o mundo inteiro, daria alegremente tudo pelo privilégio de levar-te e os nossos queridos filhos comigo; mas o sentido do meu dever sobrepuja todas as outras considerações. Não posso voltar para trás sem incorrer em culpa a minha alma.” Porém, antes de o navio partir, um dos missionários foi à casa de Carey. Grande foi a surpresa e o regozijo de todos ao saberem que esse missionário conseguiu induzir a esposa de Carey a acompanhar o seu marido. Deus comoveu o coração do comandante do navio a levá-la em companhia dos filhos, sem pagar passagem.[1]

Essa é uma demonstração de uma das primeiras barreiras a serem vencidas no chamado missionário quando este se destina a um casal – a unidade de pensamento de ambos. O chamado de um homem estará anulado se a sua esposa não se sentir chamada tanto quanto ele. Os propósitos de Deus sempre incluem o casal e a vontade de ambos precisa estar rendida a Deus. Não bastará um “Eis-me aqui, envia-me a mim” (Is 6.8). Será necessário um “Eis-nos aqui, Senhor. Envia-nos a nós”.

Começando da maneira certa

Para aqueles que têm convicção de um chamado missionário ou pastoral ainda solteiros, seria imprudente escolher alguém sem o mesmo chamado. É muito fácil para a jovem interessar-se por um rapaz que se destaque dentro do contexto eclesiástico. Ver alguém cheio de planos e ousadia pode ser inspirador. Entretanto, isso não significa que são adequados um para o outro. Sem um chamado comum, essa união pode ser frustrante. A união entre um vocacionado e uma não vocacionada (e vice-versa) será aniquilador. O forte sentimento que existe no início de todos relacionamento, pode dificultar a análise dos desafios do ministérios. Se alguém ama uma pessoa, terá de amar seu ministério também, pois são inseparáveis.

O casal Goforth teve grande impacto como missionários na China. Todavia, sua partida para aquela difícil nação já nasceu dentro de um contexto missionário. Eles se uniram porque seus objetivos se uniam. Eles se casaram somente porque perceberam que desejavam a mesma coisa em termos de obra de Deus.

“Comecei, aos vinte anos de idade, a orar pedindo que, se o Senhor desejasse que eu me casasse, Ele me dirigisse um moço inteiramente dedicado a Ele e ao seu serviço… Certo domingo, achei-me em uma reunião de obreiros da Toronto Mission Union. Um pouco antes de começar a reunião, alguém à porta chamou Jônatas Goforth. Ele, ao levantar-se para ir lá fora, deixou a Bíblia na cadeira. Então eu fiz uma coisa que nunca pude explicar, nem para ela achei desculpas; senti-me impelida a ir à cadeira dele, apanhei a Bíblia, e voltei à minha cadeira. Ao folhear rapidamente o livro, achei-o quase gasto pelo uso, e marcado de capa a capa. Fechei-o, e sem demora, coloquei-o de novo na cadeira. Tudo isso aconteceu em um intervalo de poucos segundos. Ali, sentada no culto, eu disse a mim mesma: ‘Esse é o moço com quem seria bom que eu me casasse’. “No mesmo dia fui apontada, juntamente com outras para abrir um ponto de pregação em outra parte de Toronto. Jônatas Goforth estava também entre o grupo. Durante as semanas que se seguiram, eu tive muitas oportunidades de ver a verdadeira grandeza da alma desse homem, a qual nem seu exterior desprezível podia esconder. Assim, quando ele me perguntou: – ‘Queres unir a tua vida à minha para irmos à China?’ Sem vacilar um só momento, respondi: – Quero!”[2]

Os resultados dessa união foram positivos porque havia unidade de pensamento e propósito. Não eram apenas duas vidas que se uniam, mas dois chamados semelhantes. Antes que os passos fossem dados em direção um ao outro, os dois já dirigiam seus olhares para o mesmo ponto. Como disse alguém, amar não é olhar um nos olhos do outro, mas olharem os dois na mesma direção. Isso também é verdade na obra de Deus.

A importante história de Hans Egede

Hans Égide foi missionário para a Groenlândia. Ele sentiu forte chamado para pregar o evangelho naquelas terras, no início do século XVIII. Ele vinha de uma família luterana que fora fortemente influenciada pelo pietismo e estava disposto a tudo para pregar o evangelho para os esquimós, naquelas terras inóspitas. Todavia, uma barreira precisava e foi vencida. Sem essa vitória seria impossível concluir seu chamado.

Nesse meio tempo (enquanto ele se preparava para cumprir seu chamado) Egede encontrou forte oposição pessoal a seus planos. Sua sogra ficou furiosa ao ouvir as notícias e sua esposa, Giertrud (13 anos mais velha que ele) mostrou-se tão aturdida que chegou a insinuar que estava arrependida de ter-se casado com ele. Mas a atitude dela mudou. Depois de orar junto com o  marido sobre a questão, ela tornou-se sua mais fiel colaboradora e eles avançaram juntos no que se transformara então num chamado duplo.[3]

Esse belo exemplo daquilo que foi descrito como um chamado duplo é uma sólida demonstração de como funciona o chamado de um casal. Se não houver concordância entre ambos, concordância de coração, não pode haver a realização de qualquer ministério. Tem sido comum aos homens se acharem na obrigação de “atropelar” a esposa e olhar a resistência dela como um obstáculo a ser destruído. Todavia, esse não é o modo de Deus. Aquele que fez dos dois “uma só carne”, realizará seus propósitos na unanimidade do casal. Muitas mulheres foram para o campo missionário de boa vontade, mas houve mulheres que participaram das missões em desejar estar nelas, escreveu Ruth A. Tucker. Dorothy Carey é um exemplo notável. [4] Esposas insatisfeitas no campo missionário é uma estratégia nada produtiva.

É necessário que haja paciência, pois a obra missionária não foi estabelecida por Deus para destruir os casais. Se há um chamado divino, há um caminho divino a ser percorrido e com certeza ele não significa conflitos matrimoniais e discordâncias. Se alguém ainda está endurecido, o quebrantamento precisa vir de Deus. Não por força, nem por violência, mas pelo meu Espírito, diz o Senhor. (Ml 4.6). Para que o propósito de Deus se realize é preciso concordância e comunhão.

Casais missionários

O grande século das missões protestantes (Século XIX) contou com um grande exército de missionárias solteiras. Alguns homens também viam a necessidade de missionárias solteiras no campo missionário, mas a opinião pública durante grande parte do século XIX era oposta à idéia. Não obstante, a partir de 1820, mulheres solteiras começaram a atravessar o Atlântico.

É completamente verdadeiro o que o apóstolo Paulo escreveu sobre os solteiro e os casados: E bem quisera eu que estivésseis sem cuidado. O solteiro cuida das coisas do Senhor, em como há 33 de agradar ao Senhor; mas o que é casado cuida das coisas do  mundo, em como há de agradar à mulher. Há diferença entre a mulher casada e a virgem: a solteira cuida das coisas do Senhor para ser santa, tanto no corpo como no espírito; porém a casada cuida das coisas do mundo, em como há de agradar ao marido. (1 Co 7.32-35). Ainda assim, o mundo deve muito há casais como Adoniram e Nancy Judson, missionários na Birmânia; Jonathan e Rosalind Gofortth, missionários na China; Robert e Mary Moffat, missionários na África; Gunar e Frida Vingren no Brasil. E a inúmeros casais missionários, famosos e anônimos que se crucificaram suas vidas em prol do Reino de Deus. Embora em muitos casos as esposas de grandes homens tenham vivido e morrido no anonimato, esses homens não realizariam coisa alguma se suas esposas não compartilhassem do seu chamado de alguma forma.

É importante frisar que compartilhar do chamado do marido não significa exercer um ministério igual ao dele ou tão destacado quanto. As vezes, o papel da esposa pode ser apenas cuidar do marido e sem esse cuidado seu chamado não se efetivaria. O importante é que ambos se sintam chamados para sua missão.

Imagens de um belo casal

O que nos ensina a Bíblia, mais particularmente o Novo Testamento, sobre a obra de Deus realizada por casais? Muito pouco. Na maioria das vezes teremos que ler nas entrelinhas. Não são muitas as passagens onde eles surgem, mas sempre estão juntos. Seus nomes estão sempre ligados assim como suas vidas. Deixaram sua marca não somente nas páginas do Novo Testamento, mas na própria História do Cristianismo. Homens de Deus tiveram seus corações marcados por este casal de Deus.

A primeira vez que Áquila e Priscila surgem, eles estão em uma situação difícil. Haviam sido expulsos de Roma e tem agora de se adaptar às condições da cidade de Corinto. Quem nunca viveu uma situação como esta, deixar compulsoriamente um lugar onde está bem estabelecido para ir a um lugar estranho, talvez não saiba o que isto significa.  Paulo os encontrou em Corinto e ficou com eles (At 18.2). A verdade é que poucas coisas unem mais as pessoas do que sofrer junto. Você pode se esquecer dos que se assentaram com você em uma mesa farta. Todavia, dificilmente esquecerá daqueles que passaram fome ao seu lado. Ter enfrentado aquela crise juntos, uniu Priscila e Áquila para os tempos futuros.

É dito acerca deles que “(Paulo) tinha o mesmo ofício que eles” (At 18.3). “Eles” é uma palavra chave. Priscila e Áquila trabalhavam juntos como fabricantes de tendas. Isto lhes deu unidade também. Sofreram juntos o desafio do exílio e trabalhavam juntos em seu ofício. Estavam sendo forjados na mesma fornalha, talhados na mesma pedra. Á medida que novas referências a eles vão surgindo, percebe-se sua união e sua harmonia.

Tão grande foi seu impacto sobre a vida do apóstolo que ele “navegou para a Síria e com ele Priscila e Áquila” (At 18.18). O casal inseparável desfruta da mesma visão, caminha junto no mesmo objetivo. Em primeiro lugar está o

Reino de Deus e eles estão dispostos a novos sacrifícios de mudanças se for necessário. Sente-se a concordância para este novo desafio. Não se tratava de uma viagem de turismo pela Europa e a Ásia, mas de trocar a estabilidade financeira pela instabilidade de uma vida consagrada ao Senhor. E o acordo deles nesse ponto é perceptível. Eles são os precursores de muitos casais missionários que colaboraram para transformar o mundo e expandir a Igreja.

Eles ficam em Éfeso enquanto Paulo prossegue (v.19). Por que ficaram? É difícil saber. Ou melhor. É possível saber. Havia um propósito de Deus nisso que será manifesto depois. Dali a um tempo chegará na cidade de Éfeso um homem que terá um importante papel na formação da igreja infante. Seu nome é Apolo e é descrito como “eloqüente e poderoso nas Escrituras”. (v. 24). Ele chegou na sinagoga e impressionou com sua ousadia. O casal estava presente e diz que “o levaram consigo e lhe declararam mais pontualmente o caminho de Deus” (V. 26).

Que temos aqui? Um casal com a mesma visão. Não foi uma ação individual de Áquila ou um capricho de Priscila. Em sua comunhão perceberam o potencial que havia naquele pregador. Unanimemente concordaram em levá-lo consigo. O segundo passo, ainda mais importante, foi que os dois trabalharam na instrução daquele líder. Tanto ele quanto ela “lhe explicaram com mais exatidão” (NVI) as coisas pertinentes ao evangelho. Tinham uma somente e um só coração, repletos do conhecimento e do amor de Deus e trabalharam juntos lapidando aquele homem de Deus. O impacto de Apolo seria grande no cristianismo primitivo, a ponto de até haver quem defenda ser ele o autor da epístola aos Hebreus.

Mas não terminam por aqui as referências. Áquila e Priscila fizeram de suas casas, igrejas. Abriram as portas de sua moradia, como ocorria na Igreja Primitiva e transformaram-na no lugar onde o povo de Deus se reunia (Rm 16.3-5; 1 Co 16.19). Isto chama-se dedicação integral a Deus e seria impossível um casal fazê-lo a menos que os dois andem em concordância. Sua hospitalidade precisa ser levada em conta.

Entretanto, o trabalho desse impressionante casal não termina por aqui. Há ainda mais. Paulo faz questão de lembrar que este casal expôs sua vida por amor a ele (Rm 16.3). Quase morreram para que o apóstolo se livrasse da morte. Ambos estavam imbuídos de um mesmo espírito, mergulhados em um mesmo sentimento.

Um casal missionário, ambos aptos para ensinar, ambos hospitaleiros, ambos dispostos a entregar sua vida a favor de um amigo e apóstolo. Tiveram papel marcante na vida de dois grandes líderes da igreja apostólica. Sem dúvida sua participação na formação da Igreja foi capital. Não é a toa que em sua última epístola o apóstolo aos gentios não deixou de fazer referência a eles (2 Tm 4.19)

O cristianismo deve muito a este casal e a muitos casais que como eles, ou mesmo inspirados neles, dedicaram suas vidas a apoiar a obra de Deus sobre a terra. Há um chamado a muitos casais para que como estes, vivam em unidade de corpo, de alma e de espírito, alimentando uma existência singular, cumprindo o chamado de Deus para suas vidas. Que vocês sejam um deles.

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[1] BOYER, Orlando. Heróis da Fé. Rio de Janeiro: CPAD, 1999. p. 70

[2] BOYER, P. 121

[3] TUCKER, Ruth A. …Até aos confins da terra. São Paulo: Vida Nova, 1989. p.79

[4] Idem, p. 45

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